Uma prática em Queda Livre


atualizado em 10/04/03

Uma prática em queda livre

Novas pílulas oferecem opções mais
seguras e eficientes para as mulheres
evitarem a gravidez indesejada – ou se
livrarem dela de modo menos traumático

Aida Veiga

Polêmica até a raiz, a questão do aborto continua a alimentar debates, paixões religiosas, discussões éticas e até agressões no mundo todo. Discute-se se é crime ou não, se deve ou não ser legalizado, até quando pode ser permitido, quanto os homens devem interferir no assunto. Em meio ao calor dos argumentos, um dado está passando quase despercebido: a prática do aborto diminui no mundo inteiro, no Brasil inclusive. Na década de 80, a Organização Mundial de Saúde calculou, com a precisão possível na estimativa de um procedimento que praticamente só é admitido por vias tortuosas, que 4 milhões de abortos (provocados e espontâneos) ocorriam anualmente no país. Em 1991, o Instituto Alan Guttmacher, entidade internacional que estuda a questão, cruzou dados sobre população, probabilidades e internações e baixou esse número para 1,4 milhão. Para o ano passado, estima-se algo entre 700 000 e 1 milhão de abortos. E, de agora em diante, prevê-se que a queda passe a ser muito mais pronunciada, pois os serviços públicos de saúde começam a distribuir a toda e qualquer interessada a chamada "pílula do dia seguinte". Se tomado corretamente, logo após uma relação sexual que possa conduzir à gravidez, o medicamento libera substâncias que dificultam a fecundação. Ou seja: a gravidez indesejada nem chega a se concretizar.

A conseqüência mais imediata do declínio nos abortos foi a drástica redução no número de internações hospitalares para tratamento pós-aborto. No começo dos anos 90, eram 350.000 por ano; em 2000, caíram para 238.000, sendo que o total de mortes baixou de oitenta para 28. Nem uma única vida humana pode ser desprezada, mas um número de óbitos da ordem de 28 ao ano é impressionantemente reduzido. Num primeiro momento, a diminuição do número de abortos acompanhou o aperfeiçoamento dos métodos anticoncepcionais. "Há dez, quinze anos, muitas mulheres não tomavam pílula por medo de engordar e não usavam o dispositivo intra-uterino (DIU) porque supunham que atrapalhava o orgasmo. Eram idéias equivocadas, mas que acabavam fazendo com que engravidassem. Com o tempo, e com o aprimoramento dos métodos anticoncepcionais, os medos foram ficando para trás", avalia Eduardo Tomioka, professor de ginecologia da Universidade de São Paulo (USP). Mesmo mais segura, porém, a pílula perdeu terreno nos últimos anos para um anticoncepcional bem mais radical: a esterilização feminina, que se tornou muito mais freqüente desde que sua prática foi oficializada nos hospitais públicos, na década de 90, a ponto de atualmente 40% das brasileiras em idade fértil terem feito laqueadura. Criticadíssima, apontada muitas vezes como conseqüência da manipulação de pacientes desinformadas, a laqueadura é um fenômeno brasileiro – e resultado da opção das mulheres pelo método que lhes parece mais conveniente. Contribuíram ainda para o encolhimento dos abortos a distribuição gratuita de preservativos, em nome do combate à Aids, e as campanhas oficiais em favor do planejamento familiar. A virada definitiva, no entanto, veio com a nova geração de medicamentos que substituem o aborto através da "anticoncepção de emergência", o nome técnico das pílulas do dia seguinte.

Mercado negro – Primeira marca dessa linha de medicamentos a ser lançada no Brasil, a Postinor-2 esgueirou-se pelo crivo da lei antiaborto brasileira porque sua função é impedir a própria concepção, só que depois que o casal teve relações sexuais. Pode ser comprada sem receita médica em qualquer farmácia por 15 reais. Desvantagens: tem de ser ingerida no máximo 72 horas depois da relação, e em duas doses (atenção: muitas mulheres tomam um comprimido e acham que o problema está resolvido; não está). A taxa de eficiência é de 85%. Vendida no Brasil desde 1999, ela já evitou quase 2 milhões de gravidezes indesejadas – e, certamente, um número significativo de abortos. Uma segunda marca, a Pozato, já está à venda, e outras devem se seguir. "Há um ano, ninguém sabia o que era e o médico tinha de informar a paciente; hoje, é ela que chega ao consultório contando que tomou", diz o ginecologista Tomioka. Entre a população de baixa renda, os meios de divulgação vão da confecção de livretos educativos à distribuição gratuita na rede pública em Estados como São Paulo e Rio Grande do Norte. "A estimativa é que, com uma maior divulgação sobre a ação da pílula e sua distribuição nos postos de saúde, o número de abortos caia 30% no Brasil", calcula a socióloga e antropóloga Regina Figueiredo, que estuda os resultados desse método de anticoncepção. Uma redução dessa ordem seria nada menos que espetacular. "Só entre adolescentes, contamos reduzir em 10% o número de abortos", acrescenta Maria José de Araújo, diretora da área técnica da saúde da mulher da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo.

Além da pílula do dia seguinte, outra droga ao alcance de quem tem dinheiro e quer fugir das clínicas clandestinas é o Cytotec (400 reais), um remédio para úlceras usado como abortivo (faz o útero se contrair e expelir o feto) que, controladíssimo nas farmácias, é receitado em consultórios e adquirido facilmente no mercado negro. Desvantagem: pode causar efeitos colaterais, como sangramentos. "Médico nenhum pode recomendar o Cytotec para fins de aborto porque é ilegal. Mas as pacientes sabem onde comprá-lo sem receita. Elas nos procuram só para aprender como usar e se informar dos riscos", diz o médico Jorge Andalaft, presidente da Comissão de Interrupção Legal da Gestação da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. Prevê-se para breve a autorização para o início dos testes no Brasil da RU486, esta sim um abortivo declarado, menos agressivo e mais seguro que o Cytotec. Aprovada nos Estados Unidos e na Europa, a RU486 (230 dólares no mercado americano) topará no Brasil com a rigorosa legislação antiaborto e dificilmente terá alvará para ser comercializada em farmácias, limitando-se seu uso – oficial, bem entendido – aos hospitais e às circunstâncias em que a prática é permitida.

Momento 1 – Rigorosíssima na vigilância contra quase todas as formas de contracepção, a Igreja Católica combate o uso inclusive da pílula do dia seguinte. Para as autoridades católicas, abortar é tirar uma vida, nem que seja potencial. A base dessa afirmação, devidamente acompanhada de argumentações éticas, morais e religiosas, é a definição do momento em que a vida se inicia. Católicos e judeus consideram, à luz dos conhecimentos atuais, que ela começa no momento 1, aquele do encontro do espermatozóide com o óvulo. O zigoto resultante, argumentam, já possui uma carga genética e, conseqüentemente, uma individualidade. Na interpretação da maioria das religiões protestantes, a vida começa no momento 2, o da efetiva fecundação, um processo que só se completa cerca de 72 horas após o encontro óvulo-espermatozóide. Essa fase pré-embrionária contém os fundamentos do que, nas cinco semanas seguintes, vai configurar cérebro, pele, ouvidos, olhos, pulmões, intestinos, sangue, músculos e ossos, mas só aos três meses de gravidez o embrião ganha aspecto humano e a qualificação de feto – palavra latina que significa "novo ser". Com 24 semanas, ele tem chance de sobreviver se nascer prematuro, e esse é o limite aceitável para a interrupção da gravidez na maioria dos países onde o aborto é permitido – 55 no total, sendo que em cinco (Canadá, China, Coréia do Norte, Vietnã e Zâmbia) pode ocorrer em qualquer estágio da gravidez. Entre os que proíbem, a legislação na maioria é semelhante à brasileira, ou seja: aborto, só em casos de estupro ou quando a gravidez traz risco de vida para a mãe.

Compradas e usadas com ou sem permissão da Igreja ou das autoridades, as novas pílulas representam, em termos de segurança para a saúde da mulher, um monumental avanço na técnica de aborto, que nos seus primórdios se baseou justamente na capacidade de provocar infecções: com um objeto pontiagudo, furava-se a bolsa de líquido na qual o embrião fica imerso, abrindo caminho para a ação de bactérias. Nos anos 80, o procedimento abortivo mais comum consistia em promover a dilatação do colo uterino com medicamentos e, em seguida, fazer uma curetagem. Removia-se o feto e, às vezes, perfurava-se o útero, aí com resultados trágicos. Mais recentemente, a técnica considerada segura é a da aspiração: através do colo uterino dilatado, introduz-se um tubo ligado a um aparelho de sucção que esvazia o interior do útero em minutos. Segundo estatísticas americanas, quando o método é executado com perícia, a taxa de complicações é de apenas 1%.

Faz de conta – Ainda que descomplicado, o procedimento é caro (um aborto em clínica de primeira custa 2.500 reais) e cercado de sigilo. Daí o sucesso do Cytotec, remédio liberado em 1986 para tratamento de úlcera e posto sob controle rigoroso em 1991, quando sua função abortiva já era conhecidíssima e explorada no país todo. O Cytotec dilata o útero de tal forma que provoca contrações e dores fortes, semelhantes às do parto, até expulsar o feto. Sem acompanhamento médico, podem ocorrer sangramentos e até infecção generalizada. A RU486, por sua vez, consiste de cinco comprimidos. Os três primeiros bloqueiam a produção do hormônio progesterona, e sem ele o embrião não se fixa na parede do útero. Dois dias depois, os outros dois, que se baseiam no mesmo princípio do Cytotec, garantem que ele será expelido. "A segunda fase é só para assegurar o sucesso da primeira. Na maioria dos casos, o organismo encarrega-se sozinho, e imediatamente, de expelir o embrião", explica o médico Thomaz Gollop, diretor do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana.

A RU486 começou a ser comercializada nos Estados Unidos em dezembro passado, doze anos depois de ter sido aprovada na França, onde foi inventada. Sua chegada aos EUA (onde é comercializada com o nome de Mifeprex) pôs em polvorosa as clínicas particulares que vivem de fazer abortos, prática que, com mais ou menos rigor, é permitida na maioria dos Estados americanos. Lá, como aqui, o número de abortos cirúrgicos tem caído, e a Mifeprex estimula ainda mais essa tendência. A primeira conseqüência da entrada da RU486 no mercado americano foi a queda no preço: um aborto custa hoje 250 dólares, só 20 a mais que o comprimido. No Brasil, em geral, tomar Cytotec é encarado como saída para a mulher que engravidou, quer abortar, mas não tem coragem de ir a uma clínica clandestina. Além da facilidade de fazer tudo em casa, a ressaca emocional é mais suportável. "Ao tomar uma pílula, a mulher faz de conta que não abortou", analisa o psicanalista carioca Luis Alberto Py. "Ela não tem de ir a uma clínica clandestina e ser atendida por um médico que não poderia estar fazendo o que faz, não toma anestesia, não deita numa cama e mal percebe que o feto está no meio de todo aquele sangue que seu corpo põe para fora." Culpa e remorso são sentimentos comuns à mulher que faz aborto, uma prática que freqüentemente tumultua as fronteiras da racionalidade – quem é contra faz; quem é a favor muitas vezes hesita; quem queria fazer mas desistiu torna-se mãe exemplar em questão de minutos, entre outras reações peculiares. Segundo uma pesquisa mundial do Instituto Alan Guttmacher, 40% das mulheres que abortam o fazem porque consideram que um filho naquele momento atrapalharia a vida profissional ou os estudos. "Talvez essa seja a decisão mais pessoal que uma mulher toma na vida", avalia a sexóloga Maria Helena Vilela, do Instituto Kaplan, de São Paulo. "É um ser que já existe optando por sua preservação emocional, em detrimento de outro que poderia vir a existir." Todos os recursos que ajudem a evitar que as mulheres se vejam diante de tal opção são mais do que bem-vindos.